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Selênio: geologia médica, biologia e implicações na saúde e distúrbios tireoidianos

Por Luiz Claudio Castro , em TIREOIDE , dia 29 de outubro de 2020 Tags:, , , , , , ,

O selênio é um oligoelemento essencial e diretamente ligado à homeostase do organismo humano1. Ele é incorporado a várias proteínas sob as formas de selenocisteína — uma modificação da cisteína na qual o átomo de enxofre é substituído pelo selênio — e selenometionina. Esta última é a principal fonte de selênio em nossa dieta. As selenoproteínas são imprescindíveis à fisiologia de importantes vias metabólicas, como as relacionadas ao desenvolvimento neuronal, aos processos antioxidantes de defesa e ao metabolismo do hormônio tireoidiano1,2.

Historicamente, o primeiro relato do impacto do selênio na saúde humana foi a descrição, na década de 1970, da maior prevalência da doença de Keshan em uma região da China cujo solo é pobre nesse micronutriente. É uma cardiomiopatia dilatada endêmica grave, potencialmente letal, cuja patogênese liga-se às baixas concentrações de selênio no indivíduo, associada à presença de algumas cepas virais como o vírus de Coxsackie tipo B3. Ela afeta principalmente crianças e mulheres adultas jovens, e a suplementação de selênio é reconhecida como a única estratégia efetiva na prevenção dessa condição3.

Desde então, o conhecimento sobre o papel do selênio na saúde humana se estendeu a outros componentes do metabolismo sistêmico, com especial foco nos distúrbios do hormônio tireoidiano. Esse é o tema abordado na revisão de Winther et al., intitulada Selenium in thyroid disorders – essential knowledge for clinicians, publicado na Nature Reviews em março de 2020, sobre a qual discutimos aqui.

Um ponto bastante especial apresentado pelos autores é a evidente diferença na quantidade de selênio presente na dieta das populações ao redor do mundo, o que leva a diferenças importantes nas concentrações desse micronutriente nos indivíduos. Isso decorre do fato de as várias regiões do planeta apresentarem distribuição heterogênea desse elemento em suas rochas, solos e águas devido a questões geológicas, com áreas insuficientes, suficientes e até mesmo com excesso desse elemento4. Consequentemente, plantas e animais que compõem a cadeia alimentar desses grupos populacionais, bem como as fontes dietéticas de selênio, proveem diferentes quantidades desse micronutriente aos indivíduos, de insuficientes a acima das recomendações diárias. Tal fenômeno descreve o campo de estudo da geologia médica, a área da ciência que integra o conhecimento do impacto dos fatores geológicos ambientais nos processos de saúde e doença de uma população5. A Endocrinologia tem vários exemplos em que a geologia médica auxilia a entender a fisiopatologia de certas condições e estabelecer políticas de saúde pública para seu controle, como a maior prevalência de distúrbios da tireoide em populações que habitam áreas deficientes em iodo ao redor do mundo.

No Brasil, há escassos estudos de integração nacional sobre a ingestão de selênio6, apesar de a castanha-do-pará ser uma importante fonte de selênio em nossa dieta. O inquérito de Tureck et al. (2017) mostrava que cerca de 19% da população brasileira apresentava ingestão insuficiente desse oligoelemento.

Um aspecto interessante sobre as concentrações de selênio no organismo é que sua associação a efeitos adversos à saúde segue uma curva em U, com maior prevalência de distúrbios na presença de deficiência ou de excesso desse elemento2.

Os autores apresentam de modo elegante como a participação do selênio na fisiologia tireoidiana segue um fluxo iniciado com sua incorporação às selenoproteínas que apresentam ação enzimática. As selenoproteínas contêm caracteristicamente uma selenocisteína em seu sítio ativo e algumas delas estão diretamente ligadas ao metabolismo dos hormônios tireoidianos — entre elas, as desiodases 1 e 2 (DIO1 e DIO2, que convertem T4 em T3), desiodase 3 (DIO3, que inativa o T4 e o T3 para proteger tecidos sensíveis), membros da família da glutationa peroxidase (GPX1, GPX3 e GPX4, que, ao degradar a H2O2, participam dos processos de iodação da tireoglobulina e proteção antioxidante dos tireócitos) e as selenoproteínas 15, S, K e M, localizadas no retículo endoplasmático e que protegem o tecido tireoidiano contra a síntese de citocinas pró-inflamatórias envolvidas na patogênese da tireoidite linfocítica crônica.

Dentro desse contexto, uma série de estudos procura descrever os mecanismos pelos quais a deficiência de selênio estaria implicada na patogênese de alguns distúrbios tireoidianos, como bócio, tireoidite linfocítica crônica, tireoidite pós-parto e doença de Graves. Entre outras vias, o aparecimento dessas condições estaria ao menos em parte associado à perda de proteção antioxidante desencadeada pela deficiência das selenoproteases envolvidas na fisiologia tireoidiana. Esse aspecto tem sido utilizado para justificar seu uso no tratamento dessas condições por parcela significativa dos médicos, como relatado em inquéritos realizados em vários países7,8. Entretanto são necessárias e desejadas evidências que suportem essa conduta, uma vez que o risco de efeitos adversos das concentrações de selênio segue uma curva em U, atingindo não só a deficiência, mas também o excesso, que pode ser provocado por suplementação desnecessária.

Nessa perspectiva, a revisão crítica dos autores, à luz das evidências mais atuais e de melhor consistência disponível, mostra que a suplementação de selênio:

— Não parece ter influência no tamanho da tireoide de indivíduos de áreas iodo-suficientes;

— Está associada à diminuição da concentração de anticorpos antitireoperoxidase em indivíduos com tireoidite linfocítica crônica, mas não à evolução da doença ou qualidade de vida dos indivíduos com essa condição;

— Não impacta a prevenção da tireoidite pós-parto ou sua evolução para hipotireoidismo permanente;

— Não gera benefícios na evolução da doença de Graves, apesar de haver dados um pouco mais consistentes sobre o impacto positivo no controle da oftalmopatia de Graves em pacientes que habitam regiões insuficientes em selênio, proposta que ainda necessita de mais dados para confirmação.

Dessa forma, o artigo merece consideração especial em sua leitura pelos vários aspectos apresentados sobre a biologia do selênio e o que se conhece sobre as implicações desse elemento em sua ocorrência natural e de sua suplementação na saúde e nos distúrbios do metabolismo da tireoide. É um material que nos instiga a mergulhar e criar uma cascata de busca de referências das referências para melhor entedimento do real estágio desse conhecimento.

Em suma, a partir das evidências disponíveis, ainda não há dados definitivos que endossem a suplementação de selênio com objetivo de prevenir ou controlar tireoidites autoimunes, hipotireoidismo e hipertireoidismo sem envolvimento ocular.

Nesse momento em que as evidências estão sendo acumuladas, devemos nos lembrar de uma importante regra do exercício ético da Medicina: em primeiro lugar, não machucar (primum non nocere).

Luiz Claudio Castroclique para ver o CV Lattes


Referências

1. Schomburg L. Dietary Selenium and Human Health. Nutrients. 2016;9(1):22

2. Rayman MP. Selenium intake, status, and health: a complex relationship. Hormones (Athens). 2020;19(1):9-14

3. Chen J. An original discovery: selenium deficiency and Keshan disease (an endemic heart disease). Asia Pac J Clin Nutr. 2012;21(3):320-6

4. Johnson CC, Fordyce FM, Rayman MP. Symposium on ‘Geographical and geological influences on nutrition’: Factors controlling the distribution of selenium in the environment and their impact on health and nutrition. Proc Nutr Soc. 2010;69(1):119-32

5. Hasan SE. Medical Geology. Reference Module in Earth Systems and Environmental Sciences. 2020:B978-0-12-409548-9.12523-0

6. Tureck C, Locateli G, Corrêa VG, Koehnlein EA. Evaluation of the Brazilian population’s intake of antioxidant nutrients and their relation with the nutritional status. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(1):30-42

7. Winther KH, Papini E, Attanasio R, Negro R, Hegedüs L. A 2018 European Thyroid Association Survey on the Use of Selenium Supplementation in Hashimoto’s Thyroiditis. Eur Thyroid J. 2020;9(2):99-105

8. Negro, R. et al. A 2016 Italian survey about the clinical use of selenium in thyroid disease. Eur. Thyroid J. 2016;5:164–170

imagem: iStock

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