Cetoacidose diabética e casos novos de diabetes tipo 1 em crianças e adolescentes brasileiros durante a pandemia de covid-19
A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) é uma emergência de saúde sem precedentes nos últimos 100 anos. À medida que os casos de síndrome respiratória aguda grave aumentaram, o atendimento por outras causas diminuiu. Além do medo da contaminação por parte da população, consultas, exames e procedimentos eletivos foram cancelados, dificultando o acesso dos pacientes aos serviços de saúde e prejudicando o diagnóstico precoce e acompanhamento de diversas doenças crônicas, entre elas o diabetes tipo 1 (DM1)1.
Durante o primeiro semestre de 2020, Alemanha, Itália e Inglaterra publicaram relatos de aumento do número de novos casos de cetoacidose diabética (CAD) e maior proporção de CAD grave. A Inglaterra também reportou aumento do número de casos novos de DM12,3,4.
A percepção do aumento de internações de crianças e adolescentes diabéticas e os relatos internacionais motivaram a realização de um estudo no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP para monitorar o comportamento do DM1 durante a primeira onda de coronavírus na região de Ribeirão Preto e comparar os dados com períodos anteriores5. A pesquisa foi recentemente apresentada no Congresso Paulista de Endocrinologia e Metabologia (#COPEM2021), tendo recebido o Prêmio COPEM de melhor tema livre na área clínica.
A investigação dos novos diagnósticos de DM1 foi feita através da comparação do número e das características dos casos novos no período de pandemia (entre abril e agosto de 2020) e nos mesmos meses dos três anos que antecederam a pandemia (entre abril e agosto de 2017, 2018 e 2019). Os resultados foram descritos na Tabela 1 e a proporção de CAD nas aberturas de quadro de DM1 é representada na Figura 1.
Para avaliar a frequência e gravidade de CAD tanto em casos novos quanto em pacientes já diabéticos, foi realizada a comparação das características clínicas e laboratoriais dos pacientes com diabetes hospitalizados no período pré-pandemia (entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020) e durante a pandemia (entre abril e agosto de 2020). Os casos internados no período de pandemia que apresentavam qualquer sintoma agudo que poderia estar relacionado ao coronavírus (febre, mal-estar, sintomas respiratórios ou gastrointestinais) coletaram RT-PCR para coronavírus e 94% dos pacientes internados — incluindo os assintomáticos — colheram anticorpos (IgM e IgG) para coronavírus.
A quantidade de casos internados se manteve semelhante, porém, aumentou a proporção de internações em menores de seis anos: 6,2% antes da pandemia contra 20% durante a pandemia. Os pacientes com diagnóstico de DM1 antes da pandemia e que foram internados durante esta tinham tempo de diagnóstico mediano de 5,7 anos e compareceram em consulta cerca de 45 dias antes da internação. Durante a pandemia, a mediana de tempo de diagnóstico foi de 3,1 anos e a última consulta havia sido 90 dias antes.
No período da pandemia, 41% dos internados tinham algum sintoma da infecção por coronavírus e realizaram RT-PCR; destes, apenas um teste foi positivo. A pesquisa de anticorpos para coronavírus do tipo IgG e IgM foi positiva em apenas 12,5% dos testados. Nenhum deles teve evolução clínica diferente dos demais. As características da CAD nos pacientes internados estão descritas na Tabela 2.
Uma hipótese dos autores desse estudo é que o aumento da frequência e gravidade de CAD e CAD grave detectado foi associado ao medo de contaminação e saturação dos atendimentos de urgência, que fez os pacientes procurarem atendimento médico apenas em fases mais avançadas dos sintomas, além da diminuição do acesso ao atendimento ambulatorial, onde os novos casos poderiam ser detectados antes da CAD.
Nas duas comparações, o número de casos novos de DM1 aumentou durante a pandemia, porém, a maioria deles não teve infecção por coronavírus documentada. A relação entre doenças virais e o desencadeamento de autoimunidade, culminando em DM1, já foram descritos para diversos vírus e, recentemente, vêm sendo apontados como possível ligação entre o aumento de casos de DM1 e a pandemia atual. A hipótese é de que o vírus utilize os receptores de angiotensina II (ACE2) expressos no pâncreas para acessar as células alfa e beta pancreáticas, prejudicando a secreção de insulina e glucagon6. Estudos dessa ordem ainda são experimentais. O estabelecimento de uma possível relação entre infeção por SARS-CoV-2 e novos casos de DM1, se existente, depende de longa e detalhada observação, com casuísticas adicionais para ser confirmado.
Referências:
5. Luciano TM, Halah MP, Sarti MTA, Floriano VG,Fonseca BL, Liberatore Junior, RD, Antonini SR. DKA and New-onset Type 1 Diabetes in Brazilian Children and Adolescents During the COVID-19 Pandemic. 2021 (Under Review).
Característica \ Ano | 2017 (n=8) | 2018 (n=9) | 2019 (n=8) | 2020 (n=18) |
Casos novos DM1/ 1.000 atendimentos de urgência pediátrica | 5,2 | 5,4 | 4,1 | 9,9 |
Idade ao diagnóstico (anos) – Mediana (variação) | 8,9 (4,9 – 13) | 7,9 (1,1 – 13,3) | 7,4 (2,1 – 14,5) | 7,6 (1,2 – 15,5) |
Menores de 6 anos | 12,5% | 33,3% | 50% | 38,8% |
Sexo – Feminino (F) Masculino (M) | 4F 4M | 5F 4M | 2F 7M | 9F 9M |
Característica \ Período | Pré-pandemia (Out/19-Fev/20) n=32 | Pandemia (Abr-Ago/20) n=35 | p-valor |
Casos novos | 6 (18,7%) | 18 (51,4%) | p=0,01 |
Caso novo de CAD | 5 (83%) | 12 (66%) | p=0,07 |
Caso novo de CAD grave | 2 (40%) | 9 (75%) | p=0,03 |
Total de CAD | 11 (34,3%) | 22 (62,8%) | p=0,01 |
Total de CAD grave | 4 (36,3%) | 12 (54,5%) | p=0,03 |
Horas para resolução da CAD | 10,8 (4-20) | 10,9 (2-34) |
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imagem: iStock
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