Saturday, June 7, 2025
Revista Científica Digital da SBEM-SP


Uso e abuso de glicocorticoides

By Rafael Buck Giorgi , in ADRENAL , at 3 de junho de 2025 Tags:, , , ,

Introdução

Os glicocorticoides revolucionaram a Medicina desde sua introdução na década de 1950, proporcionando potente ação anti-inflamatória e imunossupressora para diversas doenças. Seu descobrimento rendeu um Prêmio Nobel aos pesquisadores que isolaram a cortisona, dado o impacto terapêutico obtido. Contudo, apesar dos benefícios inegáveis, o uso de glicocorticoides (GCs) está associado a uma ampla gama de efeitos adversos potencialmente graves. Estima-se que até 90% dos pacientes em uso crônico (mais de 60 dias) desenvolvam algum efeito colateral relacionado aos glicocorticoides. Essas reações adversas podem acometer múltiplos órgãos — do sistema endócrino e metabolismo à saúde óssea, pele, olhos e saúde mental — e ocorrer mesmo com doses relativamente baixas, dependendo da duração do tratamento e suscetibilidade individual. Diante do uso disseminado e dos riscos envolvidos, é fundamental que as diferentes especialidades médicas compreendam o panorama atual do uso e abuso dos glicocorticoides, suas indicações legítimas, complicações agudas e crônicas, bem como as melhores estratégias de manejo, incluindo a necessidade de desmame gradual para evitar crise adrenal.

Epidemiologia do uso de glicocorticoides

Os glicocorticoides estão entre os medicamentos mais prescritos no mundo. Em países como os Estados Unidos, estudos populacionais mostram prevalência em torno de 1,2% dos adultos em uso de corticoide oral em um dado momento. Já em países europeus, a utilização pode ser ainda maior: na França, por exemplo, mais de 17% da população adulta recebeu ao menos uma prescrição de corticoide oral em um único ano. Esses dados são conflitantes, já que na maioria dos países não há controle sobre a venda de tais substâncias.

No Brasil, embora faltem dados epidemiológicos abrangentes, o cenário sugere uso expressivo de glicocorticoides. De forma direta ou indireta, esses fármacos são amplamente empregados no manejo de doenças reumatológicas, pulmonares, dermatológicas e outras. Além disso, características do sistema de saúde brasileiro podem favorecer o uso prolongado de corticoides: o acesso limitado a drogas imunossupressoras alternativas (como terapias biológicas) faz com que, muitas vezes, os glicocorticoides sejam a única opção viável para controlar doenças inflamatórias. Esse contexto contribui para uma dependência maior de corticoides em tratamentos de longo prazo.

Também preocupa a frequência de uso inapropriado de glicocorticoides, seja por prescrição médica fora das indicações, seja por automedicação. Estudos internacionais revelam taxas alarmantes de uso inadequado: na Índia, 88,4% das prescrições de corticoides em um levantamento foram consideradas indevidas ou sem indicação clínica precisa; nos Estados Unidos, mais de 11% dos pacientes com infecções de vias aéreas agudas receberam corticoide sistêmico sem respaldo nas diretrizes. Esses dados reforçam a importância de vigilância quanto às indicações e duração da terapia corticoide.

Os glicocorticoides possuem ampla utilidade terapêutica e fazem parte do arsenal de diversas especialidades. Algumas das principais indicações legítimas incluem: doenças reumatológicas e autoimunes, respiratórias, dermatológicas, transplantes e imunossupressão, insuficiências endócrinas.

É importante notar que, quando usados adequadamente nessas situações, os glicocorticoides podem salvar vidas e melhorar muito os sintomas e a qualidade de vida dos pacientes. No entanto, é sempre recomendada a menor dose eficaz pelo menor tempo possível, devido ao perfil de efeitos adversos significativos.

Formas comuns de uso abusivo e automedicação

Infelizmente, o abuso de glicocorticoides é um problema frequente — por busca de benefícios estéticos, automedicação para alívio rápido de sintomas ou uso indevido em contextos não médicos. Algumas formas comuns de uso inadequado incluem:

  • Automedicação para condições benignas. Muitos pacientes adquirem corticoides diretamente em farmácias para tratar alergias, resfriados, sinusites ou dores musculares, atraídos pelo alívio sintomático que a droga proporciona. Por exemplo, não é incomum o uso de injeções de dexametasona em quadros virais ou gripais, o que traz melhora passageira, porém expõe o indivíduo a riscos desnecessários e pode mascarar sintomas de infecções.

  • Doping em atletas. No esporte, os glicocorticoides às vezes são usados ilegalmente para melhorar performance ou acelerar recuperação de lesões. No futebol brasileiro, por exemplo, substâncias glicocorticoides foram detectadas em 21,2% dos casos positivos de doping ao longo de 10 anos, sendo o segundo grupo de drogas mais frequente, atrás apenas de estimulantes. O uso nesses casos visa ao efeito anti-inflamatório e analgesia, porém configura abuso por fugir das indicações médicas e pode causar danos à saúde do atleta.

  • Uso crônico sem supervisão médica. Alguns pacientes com doenças crônicas (como artrites, dores lombares, rinite alérgica) acabam mantendo uso prolongado de prednisona por conta própria, por não conseguirem acompanhamento regular ou por acreditarem ser “a única coisa que ajuda”. Essa automedicação prolongada, sem monitoramento, expõe o paciente a todas as complicações dos corticoides sem manejo adequado dos riscos.

Os profissionais de saúde devem estar atentos a esses padrões de abuso. A facilidade de acesso a corticoides em certas localidades e a percepção de que são medicamentos “fortes” que resolvem rapidamente os sintomas contribuem para a manutenção dessas práticas de uso indevido. Campanhas de conscientização sobre os riscos e uma fiscalização mais rígida na dispensação podem ajudar a mitigar o problema.

Complicações agudas e crônicas do uso de glicocorticoides

O uso inadequado ou prolongado de glicocorticoides pode levar a uma série de complicações, que podem se manifestar tanto de forma aguda (durante o uso de curto prazo ou logo após aumento de dose) quanto crônica (resultantes de uso prolongado). A seguir, resumimos as principais complicações.

Complicações agudas

  • Distúrbios neuropsiquiátricos agudos. Altas doses de corticoides podem precipitar alterações do humor, insônia, agitação psicomotora e até quadros psicóticos agudos (por exemplo, mania ou psicose esteroide). Esses efeitos podem surgir dias após o início do tratamento e requerem redução da dose ou introdução de medicações ansiolíticas/antipsicóticas se graves. Em geral, mais de 90% dos casos de sintomas neuropsiquiátricos melhoram em até seis semanas após suspender o corticoide.

  • Hiperglicemia e descompensação diabética. Os glicocorticoides elevam a glicemia ao aumentar a gliconeogênese hepática e induzir resistência insulínica. Mesmo em não diabéticos, podem causar hiperglicemia transitória; em diabéticos, podem precipitar cetoacidose diabética ou estado hiperosmolar hiperglicêmico. Isso pode ocorrer rapidamente após início de doses altas, exigindo monitorização da glicose capilar e, às vezes, uso temporário de insulina.

  • Alterações hidroeletrolíticas e cardiovasculares agudas. Por seu efeito mineralocorticoide (especialmente corticoides como prednisona em doses elevadas), pode ocorrer retenção de sódio e água, levando a edema periférico e aumento transitório da pressão arterial. Hipocalemia (redução do potássio sérico) também pode ocorrer, o que em casos graves provoca fraqueza muscular ou arritmias cardíacas. Indivíduos com insuficiência cardíaca congestiva podem apresentar piora aguda do quadro de retenção hídrica.

  • Gastrite e risco de úlcera aguda. Os corticoides aumentam a secreção ácida e reduzem a camada de muco protetor do estômago, podendo precipitar dor epigástrica ou até sangramento gastrointestinal agudo, sobretudo quando combinados a AINEs. Pacientes internados recebendo doses altas frequentemente necessitam profilaxia com bloqueadores de bomba de prótons para prevenir úlceras de estresse.


Complicações crônicas

  • Síndrome de Cushing iatrogênica. Conjunto de sinais e sintomas decorrentes do excesso crônico de corticoide exógeno. Inclui facies cushingoide (face arredondada em “lua cheia”), distribuição centrípeta de gordura (tronco-obesidade com membros  relativamente finos), giba dorsal (“corcova de búfalo”), ganho de peso, estrias violáceas largas em abdômen, equimoses fáceis e atrofia cutânea. Pode se desenvolver ao longo de meses de tratamento e é indicativo de exposição excessiva. Está frequentemente acompanhado de alterações metabólicas, como intolerância à glicose / diabetes e dislipidemia.

  • Supressão do eixo adrenal (insuficiência adrenal secundária). O uso prolongado de glicocorticoides exógenos suprime a secreção endógena de cortisol pelas adrenais via feedback negativo no eixo hipotálamo-hipófise. Com o tempo, pode ocorrer atrofia das glândulas adrenais. Clinicamente, o paciente pode não apresentar  sintomas enquanto continua tomando o corticoide, porém perde a capacidade de produzir cortisol adequado em situações de estresse (infecções, cirurgias, traumas). A insuficiência adrenal secundária se manifesta por fadiga crônica, anorexia, perda de peso, hipotensão postural, hipoglicemia e pode precipitar crise adrenal se o corticoide for retirado abruptamente. É uma complicação potencialmente grave, e sua prevenção exige o desmame gradual e vigilância dos sinais de insuficiência adrenal durante e após a retirada do fármaco. Ao contrário do que se pensa, não são apenas os corticoides orais e injetáveis que podem causar essa supressão. Há diversos relatos de casos de crise drenal após uso de corticoides inalatórios, transdérmicos e tópicos.

  • Osteoporose e fraturas ósseas. A perda de massa óssea induzida por glicocorticoides é uma das consequências mais impactantes do uso crônico. Os corticoides reduzem a formação óssea e aumentam a reabsorção, resultando em osteoporose secundária. O risco de fraturas vertebrais e de costelas aumenta significativamente estudos indicam incidência de fraturas entre 30% e 50% em pacientes em uso de corticoide por mais de três meses. A osteoporose por corticoide pode ocorrer precocemente (dentro de meses do início da terapia), especialmente em doses moderadas a altas, e frequentemente é assintomática até a ocorrência de fratura. As fraturas vertebrais podem causar dor, perda de estatura e cifose (“corcunda”).

  • Miopatia e fraqueza muscular. O catabolismo proteico estimulado pelos corticoides pode levar à miopatia esteroide, caracterizada por fraqueza muscular proximal (dificuldade para subir escada, levantar-se de uma cadeira ou elevar os braços). Essa miopatia costuma ser insidiosa, desenvolvendo-se com uso prolongado e doses altas, e é potencialmente reversível com redução da dose, embora a recuperação possa ser lenta.

  • Alterações imunológicas e infecções. O efeito imunossupressor torna os pacientes sob corticoterapia crônica mais suscetíveis a infecções. Há maior risco de infecções comuns (por exemplo, pneumonias bacterianas, celulites, infecções de pele) e de infecções oportunistas incomuns em imunocompetentes (como fungos sistêmicos, Pneumocystis jirovecii em uso de altas doses ou reativação de tuberculose latente). Vacinas com agentes vivos são contraindicadas em pacientes sob doses imunossupressoras de corticoide; mesmo infecções banais podem se disseminar ou apresentar curso atípico nesses pacientes. Adicionalmente, os sinais de infecção podem ser mascarados (corticoides suprimem febre e resposta inflamatória), retardando o diagnóstico.

  • Complicações cardiovasculares e metabólicas. Além da já mencionada hiperglicemia e dislipidemia, o uso crônico de corticoides contribui para hipertensão arterial sistêmica (pelo efeito mineralocorticoide e expansor de volume) e aumenta o risco cardiovascular global. Pacientes em uso prolongado apresentam maior incidência de eventos como infarto agudo do miocárdio e AVC, possivelmente devido à combinação de fatores de risco (hipertensão, diabetes, dislipidemia) e efeitos diretos hormonais. Deve-se monitorar periodicamente a pressão arterial e tratar fatores de risco agressivamente.

  • Alterações dermatológicas. O uso crônico leva à atrofia cutânea: a pele se torna fina, frágil, com fácil aparecimento de equimoses (roxos) mesmo com traumas mínimos. Estrias largas e de cor violácea aparecem em áreas como abdômen, axilas e raiz das coxas, decorrentes do estiramento da pele enfraquecida pelo depósito de gordura. Há também atraso na cicatrização de feridas e maior propensão a acne e foliculites. Essas alterações impactam a qualidade de vida e a autoimagem do paciente.

  • Complicações oftalmológicas. Dois problemas oculares são classicamente associados ao uso prolongado de corticoides sistêmicos: catarata subcapsular posterior e glaucoma. A catarata pode se desenvolver mesmo com doses moderadas e é frequentemente bilateral, levando à perda progressiva da acuidade visual. O glaucoma (aumento da pressão intraocular) ocorre por alteração no fluxo do humor aquoso e pode evoluir silenciosamente, sendo recomendável realizar avaliações oftalmológicas periódicas (fundoscopia e tonometria) em pacientes sob uso crônico.

  • Distúrbios psiquiátricos crônicos. Além dos eventos agudos já mencionados, o uso prolongado pode contribuir para sintomas como irritabilidade, labilidade emocional, ansiedade crônica e depressão. Alguns pacientes referem sensação de bem-estar  excessivo ou euforia enquanto estão sob corticoide, seguida de “queda” do humor conforme a dose é reduzida. Em pacientes com histórico psiquiátrico, os corticoides podem exacerbar condições pré-existentes, sendo importante o acompanhamento de saúde mental nesses casos.

Resumidamente, as complicações dos glicocorticoides são numerosas e acometem múltiplos sistemas. Estudos sugerem que praticamente todos os pacientes em uso prolongado terão algum grau de evento adverso, reforçando a necessidade de uso criterioso. O clínico deve conhecer e rastrear ativamente essas possíveis complicações durante as consultas de seguimento.

Estratégias de manejo para usuários de corticoide prolongado
Para pacientes que necessitam de terapia prolongada com glicocorticoides, é essencial adotar estratégias de manejo que minimizem riscos e monitorem ativamente as complicações. As principais medidas incluem:

  • Uso da menor dose efetiva e revisão periódica da necessidade. Sempre que possível, deve-se titular a dose para baixo, buscando a menor dose de manutenção que controle a doença do paciente. A cada consulta, reavaliar se é factível reduzir a dose ou espaçar a administração (por exemplo, dias alternados, em casos selecionados).

  • Monitoramento clínico rigoroso. Pacientes em uso prolongado devem ser acompanhados de perto. Consultas regulares para avaliar sinais vitais (PA, peso), sintomas novos (por exemplo, sinais de infecção ocultos, sintomas de insuficiência adrenal) e exames físicos dirigidos (busca de equimoses, catarata, avaliação de força muscular etc.) são mandatórios. Também é importante monitorar parâmetros laboratoriais periódicos: glicemia de jejum e HbA1c (rastreamento de diabetes), perfil lipídico, eletrólitos (particularmente potássio) e função óssea (marcadores de metabolismo ósseo se disponível).

  • Prevenção e tratamento da osteoporose. Dado o alto risco de perda óssea, todo paciente com previsão de uso de corticoide por mais de três meses deve receber orientações de saúde óssea. Isso inclui ingestão adequada de cálcio e vitamina D (suplementação se necessário) e atividade física com carga (dentro do possível) para estimular os ossos. Conforme diretrizes, se o paciente tiver risco moderado a alto de fratura (avaliado por escore FRAX adaptado para uso de corticoide ou critérios da Sociedade Brasileira de Reumatologia), está indicada terapia farmacológica preventiva da osteoporose. Bisfosfonatos orais (alendronato) ou intravenosos (zoledronato) são a primeira linha na maioria dos casos de prevenção de osteoporose induzida por glicocorticoide. Entretanto dados mostram subutilização dessa medida — em estudo estadunidense, apenas 8,6% dos pacientes em uso crônico de corticoide recebiam um bisfosfonato. Portanto o médico deve se atentar e iniciar o tratamento protetor ósseo quando indicado. Além disso, realizar densitometria óssea (DXA) de controle: idealmente uma basal no início do uso prolongado e repeti-la a cada um a dois anos para acompanhar a densidade mineral óssea.

  • Profilaxia de outras complicações. Considerar protetor gástrico (como IBP) em pacientes com fatores de risco para úlcera péptica ou que usem AINE concomitante. Manter rigoroso controle pressórico e metabólico (iniciando anti-hipertensivos e hipoglicemiantes conforme necessidade). Recomendar dieta hipocalórica moderada, fracionada e com redução de sódio para mitigar ganho de peso e edema. Incentivar higiene do sono e eventualmente prescrever agente para insônia se esta for significativa. Monitorar pressão intraocular e realizar exame oftalmológico anual para detecção precoce de catarata e glaucoma.

  • Imunizações e prevenção de infecções. Antes de iniciar corticoide em dose imunossupressora (equivalente a ≥ 20 mg de prednisona/dia por mais de duas semanas), o ideal é atualizar o calendário vacinal do paciente. Vacinas com organismos inativados (gripe, pneumococo, hepatite B, covid-19) podem e devem ser aplicadas; vacinas de vírus vivo atenuado (febre amarela, varicela, sarampo) são contraindicadas durante o uso de altas doses de corticoide — se possível, administrar essas vacinas pelo menos quatro semanas antes de iniciar a terapia. Durante o uso prolongado, considerar profilaxia para Pneumocystis jirovecii (sulfametoxazol-trimetoprima em baixa dose) se o paciente estiver em dose alta equivalente a mais de 20 mg/dia por vários meses, especialmente se houver comorbidades. Orientar o paciente a evitar contato com pessoas com infecções ativas (ex: varicela, sarampo) se ele próprio não for imune.

  • Educação do paciente. Uma das estratégias mais importantes é assegurar que o paciente entenda seus medicamentos. Explicar os possíveis efeitos colaterais e sinais de alerta (por exemplo, informar que deve relatar imediatamente se tiver febre alta ou sintomas infecciosos atípicos). Orientar sobre dieta adequada (pobre em sal e açúcar) e a importância de não interromper o corticoide abruptamente por conta própria. Muitos médicos fornecem um cartão de alerta indicando que o paciente está em uso de corticoide, para que em emergências outros profissionais possam reconhecer a necessidade de doses de estresse.


Desmame gradual dos glicocorticoides (conforme diretriz da Endocrine Society de 2024)

Um aspecto crucial no manejo de pacientes em uso prolongado de glicocorticoide é a estratégia de desmame, ou seja, a retirada gradual da medicação. A redução lenta e planejada da dose visa permitir que o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal se recupere e volte a produzir cortisol endógeno normalmente, evitando a insuficiência adrenal secundária. Em 2024, a Endocrine Society, em conjunto com a Sociedade Europeia de Endocrinologia, publicou diretrizes atualizadas sobre o manejo da insuficiência adrenal induzida por glicocorticoides, incluindo recomendações para o desmame seguro.

De acordo com essas diretrizes, nem todos os pacientes exigem desmame — a necessidade depende da dose e duração do tratamento. Não é necessário realizar desmame em pacientes que fizeram uso de corticoide por curto prazo, definido geralmente como menos de três semanas, independentemente da dose. Nesses casos de terapia breve, pode-se suspender o fármaco abruptamente, pois o eixo adrenal provavelmente ainda está intacto. Por outro lado, para aqueles em terapia prolongada,o desmame é mandatório.

As diretrizes sugerem que, uma vez controlada a doença de base, o médico deve reduzir a dose gradativamente até atingir a dose fisiológica equivalente diária (aproximadamente 5 mg de prednisona ao dia, que corresponde à produção normal de cortisol). Essa fase inicial do desmame pode ser feita de forma um pouco mais acelerada enquanto se está em doses muito superiores ao nível fisiológico. Por exemplo, um paciente em 40 mg/dia pode ter reduções semanais de 5-10 mg até 20 mg; depois reduções de 2,5 mg por semana até 5 mg. Ao atingir cerca de 5 mg/dia de prednisona (ou dose equivalente) — que é próximo ao nível fisiológico de cortisol —, a redução deve prosseguir de forma mais lenta e cautelosa. Nessa etapa final, pode-se reduzir 1 mg de prednisona por semana (ou a cada duas semanas) e avaliar a tolerância. Alternativamente, alguns clínicos trocam a prednisona por hidrocortisona (que tem meia-vida mais curta e facilita ajustes) ao chegar em doses baixas, fazendo então reduções mais graduais da hidrocortisona. Não se faz desmame com corticoides de longa ação como dexametasona.

Individualização do desmame. Cada paciente deve ter um plano de redução personalizado, considerando fatores como duração total da terapia, dose atual, resposta da doença subjacente, idade e comorbidades. Pacientes com uso de muito longo prazo (anos) podem requerer um desmame ao longo de vários meses. Durante todo o período de redução, é fundamental monitorar sinais e sintomas de insuficiência adrenal (fadiga intensa, fraqueza, anorexia, náuseas, tonturas de hipotensão, dores musculares e articulares difusas que podem indicar síndrome de abstinência de corticoide). Esses sintomas de retirada podem mimetizar a própria insuficiência adrenal e muitas vezes se sobrepõem aos sintomas da doença em atividade, tornando o manejo desafiador. Se o paciente desenvolver sintomas significativos, pode ser necessário pausar o desmame na dose atual por mais tempo ou até aumentar temporariamente a dose e tentar reduções mais lentas posteriormente.

Suporte durante o desmame. As diretrizes enfatizam a educação do paciente durante esse processo. O paciente deve saber que pode se sentir pior durante a retirada (por exemplo, fadiga e mal-estar são comuns), e que isso não significa necessariamente recorrência da doença, mas sim o corpo se readaptando à produção endógena de cortisol. Orienta-se manter comunicação próxima — consultas ou contatos telefônicos — para ajustar o ritmo de redução conforme a tolerância de cada indivíduo. Em caso de estresse agudo (por exemplo, infecção, cirurgia de emergência) durante o desmame, o paciente deve ser instruído a aumentar temporariamente a dose (ou receber dose de estresse de hidrocortisona) devido ao risco de o eixo HHA ainda não estar respondendo adequadamente ao estresse.

Confirmando a recuperação do eixo adrenal. Uma vez alcançada a dose considerada fisiológica (ou próximo dela) e após algum tempo em doses baixas, pode-se avaliar laboratorialmente a recuperação do eixo. A diretriz de 2024 recomenda dosar cortisol sérico matinal após 24 horas da última tomada. Se o cortisol matinal estiver > 10-µg/dL, é um indício de que o eixo voltou a funcionar. Valores baixos (< 5 µg/dL) sugerem insuficiência adrenal persistente. Em casos duvidosos ou críticos (cortisol em zona intermediária), procede-se ao teste de estímulo (por exemplo, teste da cortrosina) para avaliar a reserva adrenal. Somente com evidências de recuperação do eixo pode-se descontinuar completamente o corticoide com segurança. Caso contrário, se após um ano em dose fisiológica diária o eixo ainda não recuperar (situação possível em quem usou corticoide por tempo muito prolongado), a diretriz sugere manter reposição com dose fisiológica e acompanhar, já que alguns pacientes podem necessitar suporte crônico de corticoide por insuficiência adrenal induzida.

Referências

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imagem: iStock

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