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Revista Científica Digital da SBEM-SP


Manuseio de pacientes com insuficiência adrenal em tempos de covid-19

Por Claudio E. Kater , em ADRENAL , dia 14 de junho de 2020 Tags:, , , , , , ,

Comentários sobre um artigo recente (1)

A pandemia do novo coronavírus (covid-19) já dura pelo menos seis meses! Nesse período, a literatura médico-científica foi inundada por um tsunami de publicações sobre os múltiplos aspectos dessa nova doença: em 16 de junho, havia 23.148 artigos publicados sobre covid-19 apenas no PubMed.

A área da Endocrinologia, como esperado, teve representação significativa, superada apenas pela Infectologia e Medicina de Urgência. Em comum, a curiosa observação do mecanismo de entrada do SARS-CoV-2 nas células pulmonares: a ligação da proteína dos picos (spike) do vírus utiliza como receptor da membrana alveolar a enzima de conversão da angiotensina tipo 2 (ACE-2; angiotensin-converting enzyme, type 2).

Logo se observou, também, que a transmissibilidade e o contágio pelo vírus eram altos e a gravidade da doença era real e associada com elevada taxa de mortalidade; pessoas idosas e aquelas com doenças crônicas — obesidade, diabetes, hipertensão, asma — e imunidade comprometida eram mais suscetíveis, sendo acometidas mais frequentemente, muitas necessitando de internação em UTI e uso de ventilação invasiva.

Assim, a par da obesidade e do diabetes, outras condições endócrinas crônicas, em especial aquelas de origem autoimune, passaram a ser foco de preocupação. Entre elas, os pacientes acometidos de insuficiência adrenal e aqueles em uso crônico de corticoides.

Os autores do trabalho em referência (1) relembram uma “regra de ouro” do tratamento substitutivo com glicocorticoides (GC): dobrar (ou triplicar) a dose habitual se estiver doente (sick day rules), válida para pacientes com insuficiência adrenal primária (doença de Addison e hiperplasia adrenal congênita) e secundária (pan-hipopituitarismo). Doença, aqui, significando um estado gripal, com febre, mal-estar, coriza e tosse, um provável prenúncio da covid-19, mas também de outros processos infecciosos virais ou bacterianos. Manter essas doses mais altas até resolução do quadro ou, havendo piora, com o surgimento de náuseas, vômitos e diarreia, optar pelo uso da via parenteral.

Da mesma forma, os autores atentam para outra situação que nós, endocrinologistas, conhecemos bem: os cuidados a serem tomados com a significativa parcela da população (cerca de 5%) que faz tratamento crônico com GC, por qualquer via de administração, para várias doenças inflamatórias, alérgicas ou autoimunes. A prevalência de insuficiência adrenal nesses pacientes chega a 50%, independentemente da via de administração. Além disso, pacientes que utilizam doses farmacológicas de GC são, obviamente, mais suscetíveis à covid-19, devido tanto aos efeitos imunossupressores dos esteroides quanto às comorbidades associadas à condição imunológica de base para a qual os esteroides estão sendo prescritos, ou ainda o uso concomitante de outros imunomoduladores.

O temor, nesses casos, é a possibilidade de “crise adrenal” (insuficiência adrenal aguda). A prevenção e/ou reversão desse quadro potencial — importante causa de mortalidade nesses pacientes — é relativamente simples, uma vez que tenha sido reconhecido: consiste na terapia com GC por via parenteral. Os autores novamente alertam, com propriedade, que a intenção nesses casos é “garantir que nenhum paciente com história de exposição prévia à terapia crônica com GC (> 3 meses), por qualquer via, possa vir a morrer sem que a terapia parenteral com GC tenha sido considerada”. Acrescento que o uso de doses diárias maiores que 5 mg VO de prednisona/prednisolona (ou equivalente de outros GC), por períodos maiores que dois meses, já resulta em comprometimento do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e deve ser motivo de atenção.

Reforço também que a garantia da integridade física do paciente com insuficiência adrenal por qualquer causa (primária, secundária ou terciária, isto é, resultante do uso crônico de GC) é sua orientação e educação continuada com relação à doença e seu manuseio, incluindo informações sobre o uso de medicação parenteral quando necessário (kit de emergência), cartão de identificação/alerta médico (com informações pessoais e nome/contato do médico e de um parente) e contato permanente com o médico de referência.

Outro ponto importante destacado pelos autores, e motivo de dúvida de muitos pacientes, diz respeito à necessidade ou não de usar doses farmacológicas de GC uma vez diagnosticada a covid-19. Baseado em experiência prévia com pacientes com a síndrome do desconforto respiratório agudo e aqueles afetados pela SARS e MERS (síndrome respiratória aguda grave e do Oriente Médio, causadas respectivamente pelos vírus SARS-CoV e MERS-CoV), nos quais a terapia com GC mostrou-se ineficaz ou sem benefício, ou ainda associada com maiores taxas de necessidade de ventilação invasiva e de mortalidade, a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é não prescrever GC para esses pacientes (ver nota abaixo). Assim, em vez de doses farmacológicas de GC sintético, recomenda-se o uso de doses fisiológicas de estresse de hidrocortisona, entre 50 e 100 mg IV, três vezes ao dia.

A meu ver, essas são as mensagens importantes revisadas nesse artigo, que devem ser apreendidas e utilizadas no manuseio de pacientes com insuficiência adrenal em meio à pandemia de covid-19.

Por fim, também deixo abaixo (refs. 2 a 10) uma série de artigos recentes que abordam com mais detalhes vários aspectos aqui mencionados, além de uma série de “cartas ao editor” (letters to the editor) enviadas com comentários sobre o artigo em pauta.

Nota: como a medicina continua sendo a “ciência das verdades transitórias”, acabou de sair a pré-publicação de um ensaio clínico mostrando que dexametasona em pequenas doses (6 mg oral ou IV por 10 dias)” reduziu em 1/3 as mortes de pacientes com covid-19 hospitalizados com doença grave, comparados àqueles recebendo cuidados usuais (de acordo com resultados provisórios do trial RECOVERY, anunciados na manhã de 16 de junho). As mortes no braço “dexametasona” foram reduzidas em um terço (RR 0,65, 95% CI 0,48-0,88, P = 0,0003) entre pacientes recebendo ventilação mecânica e em um quinto (RR 0,80, 95% CI 0,67-0,96, P = 0,0021) entre pacientes necessitando de oxigênio versus aqueles recebendo cuidados atuais, conforme declaração dos autores do estudo.

Nota pessoal: nem tudo que é parecido é igual! Covid-19 não é SARS nem MERS e, pelo que se antecipa do estudo RECOVERY, pacientes com covid-19 podem se beneficiar do uso de dexametasona em doses não tão elevadas, reduzindo o número de letalidade em pacientes hospitalizados! Entretanto a dexametasona não mostrou benefícios entre os pacientes que não necessitaram de suporte respiratório (RR 1,22, 95% CI 0,86-1,75).

Claudio E. Katerclique para visualizar o CV Lattes.


 Referências

1. Kaiser UB, Mirmira RG, Stewart PM. Our response to COVID-19 as Endocrinologists and Diabetologists. Version 2. J Clin Endocrinol Metab. 2020 May 1;105(5):dgaa148.

2. Pal R, Bhadada SK. Managing common endocrine disorders amid COVID-19 pandemics. Diabetes Metab Syndr. 2020 Jun 4;14(5):767-71.

3. Berton AM, Prencipe N, Giordano R, Ghigo E, Grottoli S. Systemic steroids in patients with COVID-19: pros and contras, an endocrinological point of view. J Endocrinol Invest. 2020 Jun 8:1-3.

4. Arlt W, Baldeweg SE, Pearce SHS, Simpson HL. ENDOCRINOLOGY IN THE TIME OF COVID-19: Management of adrenal insufficiency. Eur J Endocrinol. 2020 Jul;183(1):G25-G32.

5. Rhee EJ, Kim JH, Moon SJ, Lee WY. Encountering COVID-19 as Endocrinologists. Endocrinol Metab (Seoul). 2020 Apr 23. Online ahead of print. PMID: 32372573.

6. Pal R. COVID-19, hypothalamo-pituitary-adrenal axis and clinical implications. Endocrine. 2020 May;68(2):251-52.

7. Isidori AM, Arnaldi G, Boscaro M, Falorni A, Giordano C, Giordano R, et al. COVID-19 infection and glucocorticoids: update from the Italian Society of Endocrinology Expert Opinion on steroid replacement in adrenal insufficiency. J Endocrinol Invest. 2020 Apr 25:1-7.

8. Isidori AM, Pofi R, Hasenmajer V, Lenzi A, Pivonello R. Use of glucocorticoids in patients with adrenal insufficiency and COVID-19 infection. Lancet Diabetes Endocrinol. 2020 Jun;8(6):472-73.

9. Scaroni C, Armigliato M, Cannavò S. COVID-19 outbreak and steroids administration: are patients treated for Sars-Cov-2 at risk of adrenal insufficiency? J Endocrinol Invest. 2020 Apr 16:1-2.

10. Puig-Domingo M, Marazuela M, Giustina A. COVID-19 and endocrine diseases. A statement from the European Society of Endocrinology. Endocrine. 2020 Apr;68(1):2-5.


Cartas ao Editor (Letters to the Editor) com respeito ao artigo discutido (ref. 1, acima):

  1. Kobaly K, Mandel SJ, Cappola AR, Kim CS. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Jul 1;105(7):dgaa212. doi: 10.1210/clinem/dgaa212.
  2. Kasuki L, Gadelha MR. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Jul 1;105(7):dgaa224. doi: 10.1210/clinem/dgaa224.
  3. Nadolsky KZ. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Jul 1;105(7):dgaa225. doi: 10.1210/clinem/dgaa225.
  4. Zhang B, Zhang S. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Jul 1;105(7):dgaa228. doi: 10.1210/clinem/dgaa228.
  5. Masi D, Risi R, Gnessi L, Watanabe M, Mariani S, Lubrano C. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Jul 1;105(7):dgaa229. doi: 10.1210/clinem/dgaa229.
  6. Dhaliwal R, Bhadada SK, Rao SD. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Jul 1;105(7):dgaa254. doi: 10.1210/clinem/dgaa254.
imagem: iStock

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