Triagem universal do hiperaldosteronismo primário — Antigos dilemas e novas perspectivas
No 16o Congresso Paulista de Endocrinologia e Metabologia (COPEM), realizado no início de maio de 2025 em São Paulo, abordei um tema que tem sido muito discutido nos últimos meses: a triagem universal do hiperaldosteronismo primário. Desde a descrição do primeiro caso clínico de hiperaldosteronismo primário por Jerome Conn, na Universidade de Michigan, em 1954 (1), o conhecimento sobre essa doença tem evoluído. Nos anos iniciais após sua descrição, a prevalência era de 5% a 10% de hiperaldosteronismo primário em pacientes hipertensos. No entanto, um estudo recente publicado no periódico Hypertension em 2025, encontrou triagem positiva para hiperaldosteronismo primário em 25,4% de hipertensos provenientes de 41 dos 50 estados dos Estados Unidos (2). Outros estudos demonstraram uma prevalência de 10% a 25% em pacientes com hipertensão resistente ao tratamento, o que torna o hiperaldosteronismo primário a forma mais comum de hipertensão endócrina (3-5). Adicionalmente, vários estudos têm demonstrado um aumento do risco cardiovascular no hiperaldosteronismo primário (6, 7). Apesar de todas essas evidências, as taxas de rastreamento dessa doença permanecem ainda extremamente baixas.
A maioria das diretrizes das sociedades científicas, como a Endocrine Society (8), recomenda a triagem do hiperaldosteronismo primário em todo paciente hipertenso que apresente hipertensão resistente, hipocalemia espontânea ou induzida por diurético, incidentaloma adrenal, apneia obstrutiva do sono, fibrilação atrial, hipertensão de início precoce, parentes de primeiro grau com hiperaldosteronismo primário ou acidente vascular hemorrágico antes dos 40 anos. Se esses critérios forem seguidos à risca, mais da metade de todos os pacientes hipertensos teria indicação de triagem.
Além disso, pesquisadores suecos demonstraram em uma grande coorte nacional que o diagnóstico precoce e tratamento adequado de pacientes com hiperaldosteronismo primário reduziu o risco de mortalidade, especialmente cardiovascular (9). Diante desse cenário, a Sociedade Europeia de Cardiologia publicou em suas diretrizes de 2024 a recomendação de que todos os pacientes com diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica sejam triados para hiperaldosteronismo primário no momento do diagnóstico (10). Esse é um tema de crescente interesse na literatura médica, e as Sociedades de Endocrinologia devem discutir essa recomendação em futuras diretrizes.
Apesar do hiperaldosteronismo primário ser prevalente e um fator de risco para eventos cardiovasculares, apenas uma pequena parcela da população mundial que tem indicação pelas diversas diretrizes internacionais de Endocrinologia está sendo investigada atualmente. Hundemer et al. mostraram subdiagnóstico em uma coorte de indivíduos canadenses com hipertensão e hipocalemia (11). Cohen et al. também relataram que, entre veteranos dos Estados Unidos com hipertensão resistente ao tratamento, apenas 1,6% foram testados para hiperaldosteronismo primário (12). Outro estudo estadunidense identificou que 2,1% das pessoas com hipertensão resistente foram triadas (13). Esses dados não são diferentes dos estudos europeus e asiáticos, sendo que a compilação de todos esses estudos demonstra que, mundialmente, menos de 2% de todos os pacientes com indicação de triagem são de fato investigados (5).
E quais são os principais motivos para esse subdiagnóstico do hiperaldosteronismo primário? Há várias razões que contribuem para a discrepância entre o que é preconizado pelas diretrizes clínicas e as práticas de triagem no mundo real. Primeiramente, a variabilidade interindividual nas concentrações de aldosterona e na relação aldosterona-renina pode levar a resultados de triagem que não atingem os limiares diagnósticos convencionais, resultando em exclusão inadequada do diagnóstico (14, 15). Além disso, a interferência de medicamentos anti-hipertensivos na interpretação dos testes de triagem é uma barreira significativa, pois muitos médicos hesitam em ajustar ou interromper esses medicamentos para evitar interferências nos resultados. Outro fator é a falta de conscientização e educação entre os médicos de Atenção Primária sobre a prevalência e as consequências do hiperaldosteronismo primário, o que resulta em baixas taxas de triagem e diagnósticos tardios (16, 17). A complexidade da investigação diagnóstica, que muitas vezes envolve procedimentos especializados como testes confirmatórios e cateterismo seletivo de veias adrenais, também desencoraja a triagem (18, 19). Por fim, a falta de protocolos padronizados e a variabilidade nas práticas de triagem entre diferentes centros e especialidades contribuem para o subdiagnóstico.
Diante de todas essas evidências científicas, uma doença inicialmente considerada rara, que não está sendo devidamente investigada, continuará sendo rara. Por isso, estratégias para melhorar a triagem devem ser desenvolvidas, como a educação direcionada dos médicos das diversas especialidades, o desenvolvimento de diretrizes claras, o aumento do acesso e facilitação dos testes diagnósticos.
Um primeiro passo envolve o reconhecimento de que o hiperaldosteronismo primário não é uma entidade rara e deve ser encarado como um distúrbio comum e tratável, mas que muitas vezes está silenciosamente contribuindo para o risco cardiovascular e renal (20). Também é necessário aprimorar as estratégias de detecção precoce, estratificação mais precisa e intervenção individualizada. Como estratégias para o diagnóstico precoce, estão sendo aprimoradas alternativas que podem facilitar a investigação, como a implementação de algoritmos de inteligência artificial para prever subtipos de hiperaldosteronismo primário, a dosagem de perfil de esteroides combinada com técnicas de espectrometria de massa e o desenvolvimento de alternativas não invasivas ao cateterismo adrenal, como a imagem por tomografia por emissão de pósitrons (21, 22). Programas de testagem direta ao paciente, que utilizam plataformas on-line para recrutar e testar adultos hipertensos, têm mostrado ser métodos viáveis e escaláveis para aumentar a triagem do hiperaldosteronismo primário (23). A revisão dos critérios de corte para renina e aldosterona e o uso de testes confirmatórios aprimorados também estão sendo considerados para melhorar a precisão diagnóstica (3, 24).
Por fim, diante de todas essas evidências científicas, voltemos à dúvida inicial que motivou este artigo: seria interessante realizar a triagem do hiperaldosteronismo primário em todos os hipertensos (25)? Os benefícios de uma triagem universal seriam: maior detecção de casos, diagnóstico precoce, redução do risco cardiovascular e potencial para tratamento curativo quando a doença é unilateral. As desvantagens seriam: alto custo, aumento dos falsos positivos com sobrecarga de testes confirmatórios, interpretação da relação aldosterona-renina influenciada por medicações e outras condições clínicas e falta de padronização para uma triagem em larga escala.
Considerando que, na população brasileira, temos 30% de hipertensos segundo o último censo realizado pelo Ministério da Saúde, se fôssemos investigar todos os pacientes hipertensos, seriam 60 milhões de brasileiros que precisariam ser triados. Certamente isso não é viável atualmente, mas não podemos deixar de olhar para esse horizonte. Por outro lado, é imprescindível que a triagem seja feita em todos os pacientes que tenham algum risco, ou seja, naqueles com indicação respaldada pelas sociedades científicas.
Em resumo, a triagem universal do hiperaldosteronismo primário ainda não está recomendada pela maior parte das sociedades científicas, porém essas diretrizes têm sido revistas e existe uma tendência de aumentar o espectro de pacientes que necessitam ser triados. Ainda são necessários ensaios prospectivos e infraestrutura de saúde adequada para rastrear e confirmar os diagnósticos na população geral. Dessa forma, embora a triagem universal ainda não seja uma prática estabelecida, o crescente reconhecimento da alta prevalência e do impacto clínico do hiperaldosteronismo primário poderá, no futuro, justificar mudanças nas diretrizes, especialmente se sustentadas por evidências robustas e viabilidade no sistema de saúde.
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3. Turcu AF, Yang J, Vaidya A. Primary aldosteronism – a multidimensional syndrome. Nat Rev Endocrinol. 2022;18(11):665-82.
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Lívia Mara Mermejo — Clique para ver o CV Lattes
imagem: iStock
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