O impacto da invasão extratireoidiana mínima nos carcinomas de tireoide
A incidência de carcinoma diferenciado de tireoide (CDT) aumentou significativamente nas últimas décadas, sendo o carcinoma papilífero de tireoide de baixo risco cada vez mais detectado e diagnosticado.
Nesse sentido, a fim de evitar tratamentos excessivos e desnecessários, a maioria das diretrizes recentes relacionadas ao tratamento de carcinoma diferenciado de tireoide vem endossando uma estratégia de gerenciamento mais individualizada e voltada para o risco de recorrência e morte iniciais dos pacientes, de forma que a intensidade da terapia e o acompanhamento sejam compatíveis com o risco previsto.
Essa nova proposta onde “menos é mais” vem possibilitando abordagens mais conservadoras para pacientes adequadamente selecionados sem características suspeitas ou agressivas, incluindo opções como vigilância ativa para microcarcinomas papilares da tireoide, ablação térmica guiada por ultrassom de pequenos tumores papilares da tireoide intratireoidianos e lobectomia da tireoide, e enfatiza a importância do estadiamento inicial dos pacientes. Também é importante reconhecer que a estratificação de risco inicial tem grande impacto na indicação ou não de radioiodoterapia (RIT) para tais pacientes.
A classificação de risco intermediário de recorrência proposta pela American Thyroid Association (ATA) é a segunda categoria mais comum de CDT (25% – 35% dos casos). Dentro desse grupo, estão tumores com uma ou mais das seguintes características: presença de invasão extratireoidiana mínima ou invasão vascular, histologia agressiva ou metástase linfonodal clinicamente significativa (N1 clínico ou > cinco linfonodos com tamanho < 3 cm na maior dimensão). Essa classificação inclui um grupo muito heterogêneo de tumores com vários graus de agressividade, sendo as variações nas taxas de recorrência e persistência relativamente grandes nesse grupo (> 5% – 20%).
Para pacientes de risco intermediário, a literatura é controversa e não há consenso sobre a indicação e os benefícios da terapia adjuvante com 131I, pois não há dados suficientes sobre o prognóstico em longo prazo desses pacientes.
Alguns estudos retrospectivos mostraram que a RIT pode reduzir a recorrência e mortalidade específicas da doença nos pacientes desse grupo. No entanto, outros trabalhos demonstraram que o benefício da RIT ocorre apenas em um grupo seleto de pacientes dessa categoria.
A invasão extratireoidiana mínima (IEM) é uma das características mais polêmicas dentro daquelas que classificam os pacientes como de risco intermediário pela ATA.
A IEM se caracteriza pela extensão microscópica do tumor além da cápsula da tireoide, acometendo tecidos moles peritireoidianos, sendo observada em 5% a 45% dos CDTs. Independentemente do tamanho do tumor ou da idade do paciente ao diagnóstico, a IEM, quando presente, eleva a classificação de risco de recorrência e persistência tumoral de baixo para intermediário. A taxa de recorrência desses tumores varia de 3% a 9%, entretanto, ainda assim, a maioria das entidades médicas, incluindo a ATA, considera a indicação de radioiodoterapia para tais pacientes.
O real papel da IEM como fator prognóstico foi inicialmente questionado por Ito e colaboradores em 2006, e, desde então, diversos estudos têm demonstrado resultados controversos. A mais recente edição da classificação TNM do American Joint Committee on Cancer (AJCC), publicada em 2018, minimizou o impacto da IEM na mortalidade dos pacientes com CDT e rebaixou essa característica da classificação T3 para T1 ou T2 a depender do tamanho do tumor, reconhecendo que a IEM não possui fator prognóstico na mortalidade.
Como o real impacto da IEM no risco de recorrência ainda é controverso, nosso artigo publicado na Archives of Endocrinology and Metabolism em 2020 teve como objetivo avaliar o impacto da invasão extratireoidiana mínima na resposta dos pacientes ao tratamento inicial.
A amostra foi composta por 1.108 pacientes com carcinoma papilífero de tireoide (CPT), sendo 1.049 pacientes classificados inicialmente como de baixo risco pelos critérios propostos pela ATA 2015 e 59 pacientes classificados como de risco intermediário apenas pela presença da invasão extratireoidiana mínima. Aqueles pacientes que apresentavam tumores > 4 cm ou qualquer característica que os classificasse como risco intermediário além da IEM (invasão vascular, variantes histológicas agressivas e presença de metástase linfonodal clinicamente significativa e anticorpo antitireoglobulina positivo ao início do seguimento) foram excluídos.
Todos os pacientes foram submetidos à tireoidectomia total e receberam supressão com levotiroxina após a cirurgia. Nenhum paciente recebeu radioiodoterapia complementar ao tratamento inicial durante os primeiros 12 a 24 meses de seguimento e não foi realizado esvaziamento cervical profilático em nenhum dos pacientes.
É importante chamar a atenção para o fato de que, com a exclusão de outras características de risco além da IEM, foi possível excluir qualquer viés de resultado relacionado à interferência de outros fatores de risco na resposta inicial. Outro ponto relevante do nosso estudo foi a possibilidade de avaliar um número grande de pacientes que não receberam iodo radioativo nos primeiros meses de seguimento após a cirurgia inicial.
O reestadiamento seguiu as recomendações de estratificação de risco dinâmica também proposta pela ATA em 2015 e foi utilizado dosagem de tireoglobulina estimulada, pesquisa de corpo inteiro e exames de imagem. A resposta à terapia inicial foi dividida em dois grupos: os pacientes que evoluíram com resposta excelente ou indeterminada foram alocados no grupo de boa resposta e aqueles com resposta bioquímica ou estrutural incompleta no grupo de resposta desfavorável.
A maioria da amostra foi composta por mulheres, com tumores de até 2 cm e idade inferior a 55 anos ao diagnóstico. Em relação à resposta ao tratamento inicial, a grande maioria dos pacientes teve uma resposta indeterminada após 12 a 24 meses da terapia inicial (Tabela1).
Para avaliar os desfechos, foi utilizada a regressão logística multivariada, e a IEM (p: 0,44), a idade (p: 0,29), o tamanho do tumor (p: 0,38) e a presença de multifocalidade (p: 0.80) não foram associados a uma pior resposta ao tratamento. Apenas a tireoglobulina estimulada com um cutoff de 10 ng/mL foi considerada como fator de risco independente para pior resposta à terapia inicial (OR 1,303 IC 95% 1,25-1,36) com sensibilidade de 72,2% e especificidade de 98,5% (Figura1).
Portanto nosso trabalho sugere que a IEM não deve ser considerada como um fator de risco independente para pior resposta à terapia inicial em paciente com CPT e que a tireoglobulina estimulada acima de 10 ng/dL está associada a um pior desfecho durante os primeiros meses de seguimento.
Sugerimos, por fim, que pacientes que apresentam IEM como única característica de maior agressividade e tireoglobulina estimulada pós-operatória abaixo de 10 ng/mL apresentam comportamento semelhante aos pacientes de baixo risco e, portanto, podem se beneficiar de um tratamento menos agressivo, sem indicação de iodoterapia.
Como limitação, é importante ressaltar que é um estudo retrospectivo, com dados extraídos de um banco de dados de um serviço de medicina nuclear que recebe pacientes de diferentes centros de saúde e que normalmente são acompanhados em longo prazo.
Entretanto os dados desse estudo reforçam o questionamento sobre o real impacto da IEM na chance de recidiva dos CPTs, frisando que a decisão de tratamento e seguimento de pacientes com esse tipo de tumor deve levar em consideração todas as características clínicas e patológicas em conjunto, e não apenas fatores isolados.
The impact of minimal extrathyroidal extension in the recurrence of papillary thyroid cancer patients foi orientado pela Dra. Rosália Padovani e ganhou o prêmio AE&M Professor Waldemar Berardinelli durante o e-CBAEM 2021.
Maria Fernanda Ozorio de Almeida — clique para ver o CV Lattes
Rosália Padovani — clique para ver o CV Lattes
Imagem: iStock
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