Associação rara de carcinoma hepático com terapia de testosterona
Comento aqui com os colegas o interessante caso publicado no The Lancet sob o título Androgen-receptor-positive hepatocellular carcinoma in a transgender teenager taking exogenous testosterone (Carcinoma hepatocelular positivo para receptor de andrógeno em um adolescente trans em uso de testosterona exógena).
Esteatose, hepatite, cirrose e câncer são as quatro principais doenças hepáticas associadas ao gênero e sabe-se que a prevalência do carcinoma hepatocelular (CHC) é maior nos homens, variando entre 2,5:1 a 7:1 em relação às mulheres. Esse fato nos conduz à hipótese de que o andrógeno e seu respectivo receptor possam contribuir para a diferença de gênero nas várias doenças hepáticas.
Não podemos nos esquecer, porém, que a ingestão de toxinas como aflatoxina B1 (produzida por fungos contaminantes comuns de cereais armazenados), consumo de álcool e infecções virais como hepatites B e C são importantes fatores oncogênicos que contribuem para o desenvolvimento de CHC.
A via de sinalização andrógeno/receptor androgênico (RA) apresenta diferentes atuações nas diversas doenças hepáticas, suprimindo o desenvolvimento da esteatose e da cirrose, mas, na hepatite B, essa via aumenta a replicação do vírus e promove o desenvolvimento de CHC induzido por hepatite B. Por outro lado, em estágios avançados do CHC, a ativação da via de sinalização andrógeno/RA suprime metástases nos casos avançados da doença. Portanto sabe-se que a via de sinalização andrógeno/RA está envolvida no desenvolvimento do CHC relacionado à hepatite B, porém, não se sabe ao certo o mecanismo.
Da mesma forma, alguns autores demonstram que a via de sinalização do receptor androgênico (RA) exerce papel ativador no início do desenvolvimento tumoral, enquanto outros mostraram que a ativação do RA suprime metástases nos pacientes em estágios avançados de CHC não associados à hepatite B.
A expressão do RA ocorre em cerca de 2/3 dos CHCs e são mais frequentes nos pequenos tumores.
Até o momento, foram descritos cinco casos de CHC em pacientes utilizando anabolizantes: três deles eram homens CIS utilizando associações de testosterona com diferentes tipos de anabolizantes e os outros dois eram homens TRANS utilizando apenas testosterona.
Analisando o exposto acima, podemos concluir que o caso em questão representa uma associação rara de carcinoma hepático com terapia de testosterona em um indivíduo jovem, uma vez que o CHC raramente ocorre antes dos 40 anos e atinge pico aproximadamente aos 70 anos.
Outros fatores carcinogênicos como hepatites B e C foram descartados como possíveis causas do desenvolvimento tumoral nesse paciente, no entanto, o uso de álcool e outras drogas ou ingestão de toxinas não foram mencionados. A exposição à aflatoxina B1 está relacionada à inativação do gene supressor tumoral P53. A inativação desse gene é um dos principais mecanismos moleculares envolvidos na patogênese do CHC e tem sido frequentemente descrita nos pacientes portadores de CHC, especialmente em áreas geográficas onde a exposição à aflatoxina B1 é proeminente. Portanto a predisposição genética nesse caso deve ser fortemente considerada.
Na minha experiência de 22 anos de acompanhamento de homens TRANS e homens hipogonádicos em uso de cipionato de testosterona, somando mais de 400 pacientes, nunca deparei com um caso semelhante. Vale ressaltar que a dose utilizada no caso em questão (32 mg/semana) é menor que a dose de reposição utilizada na prática clínica (200 mg de 15 em 15 dias), reforçando a hipótese de que a testosterona per se não foi o fator causal do CHC nesse paciente.
Em suma, na minha opinião, o paciente descrito no artigo era portador de uma predisposição genética para o desenvolvimento do CHC (mutação no gene P53) e possivelmente já apresentava a doença em estágio muito inicial, tendo o uso de testosterona acelerado o desenvolvimento da lesão. Tal caso nos chama a atenção para a possibilidade de que o uso de testosterona exógena pode acelerar o desenvolvimento de CHC e que um acompanhamento estrutural e funcional do fígado deve fazer parte do seguimento dos homens TRANS ou CIS que utilizam testosterona. Por outro lado, por ser uma associação rara e de relação causal ainda indefinida, esse relato de caso não deve interferir na prática clínica dos endocrinologistas em prescrever testosterona para homens CIS hipogonádicos e homens TRANS, casos em que a indicação é indiscutível.
Elaine Frade Costa – clique para visualizar o CV Lattes
Referências
imagem: iStock
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